ATO 1.
Os pés estão cansados, ele está
em cima de um prédio com as mãos no bolso, esperando que o vento o faça de
pêndulo e o derrube de lá.
Marcos, cabelos cacheados, olhos
escuros, a mochila azul sempre à tiracolo, seu nome não mais o pertencia, nem
o que os olhos viam, nem o que carregava na mochila e muito menos o que
carregava no coração.
Lembrou-se de Ana, sempre doce,
sempre menina. Os mesmos cabelos cacheados que se enrolavam aos dele, os mesmos
olhos escuros, a bolsa levada à tiracolo, nada mais importava.
O vento sempre ouve os pedidos,
basta lança-los ao vento, fazer uma oferenda e esperar acontecer. Tão logo
despediu-se de Ana em pensamentos , o vento soprou com força e o derrubou de
lá.
Milésimos de segundos para um
coração e para uma mente cheia de histórias, o corpo estava voando e as
lembranças foram deixadas para trás. Tudo agora transformara-se em um corpo
cravado na calçada sem vida.
Ana não soube, ela nunca veio à
saber o que havia acontecido com Marcos. Ana nunca soube que os lobos correm à
noite em busca da lua para vê-la dançar, a lua na verdade, buscava por ela.
Marcos sempre soube, mas nunca pôde avisar.
A morte trás consigo a vida e o
mistério, em um instante um corpo cravado na calçada, instantes depois as
pessoas caminham pela calçada pisoteando as memórias que ficaram perdidas ali
esperando alguém resgatá-las.
ATO 2.
Os lobos correm e uivam atrás da
lua, as hienas, os coiotes fogem dos caçadores cruéis. O grande Urso nunca se
deitará para descansar. A fina linha que
divide o mundo humano e animal desaparece quando a lua aparece no céu.
Os corvos estão chamando por ela,
as penas estão sendo deixadas em seu caminho. Dia após dia, as mensagens são
deixadas ao vento para que possam chegar ao seu coração.
As estrelas falam o tempo todo,
mas é preciso olhar para o céu para encontrar a mensagem. Onde está ela? Todos
se perguntam e uivam para que ela apareça logo.
A briga pela sobrevivência, as
hienas destroçam o pequeno animal e riem comendo sua carne. A lei é clara, os
maiores e mais aptos comem os menores e menos aptos, não há espaço para
inteligência ou amor.
As ervas estão sendo queimadas,
mensagens de fumaça estão sendo enviadas. Ana onde está você? É a natureza
selvagem que clama por você! Que as mensagens cheguem à você através dos seus
sonhos e que você venha conhecer o mistério.
ATO 3.
Ana está tentando dormir, sua
mente está inquieta. É a décima noite que dorme de madrugada, mesmo tendo que
levantar cedo no dia seguinte. Lá fora ela ouve os cachorros latindo, brigando,
lutando por um pedaço de carne qualquer. As corujas piam, os passarinhos se
acomodam ao pôr do sol e ela permanece com os olhos acessos.
Todas os dias centenas de
mensagens são enviadas, mas quem é que está apto para recebe-las e decifrá-las?
O que é que determina quem vai
salvar e quem vai tirar vidas? Porque você está chorando como se tudo fosse o
fim? A mensagem é clara, a morte esconde em si a vida e o mistério, basta ter
olhos para ver.
Ana não vê com os olhos e não
ouve com os ouvidos, mas em seus sonhos os tambores tocam e os animais uivam em
seu coração. A montanha sagrada, o vento ancião, as mensagens secretas são
depositadas em seu coração, como um ninho.
Ana, você sabe quanto tempo ainda
tem? Quanto tempo lhe resta? Ouça o chamado dos antigos antes que seja tarde
demais. Ana, onde está você que não pode
ouvir?
As mensagens acumulam-se em seu
coração mas o caminho da verdade parece estar obstruído.
ATO 4.
Hoje Ana acordou sentindo dentro
de si uma morte. Andou pela cidade e pisou nas memórias de Marcos sem saber.
Olhou-se num espelho que não era seu e viu lágrimas correndo pelo seu
rosto. O coração apertava-lhe o peito e
a impedia de respirar. Quem era essa pessoa que lhe fazia falta e que ela não
conhecia? Ela sentia que devia viajar pra algum lugar, sentia vontade de voar
para um lugar distante que ela não sabia onde era. Passou a semana calada,
chorosa, tentando descobrir o que lhe tirava o ar.
Numa manhã encontrou um pequeno
papel onde estava escrito “ a morte esconde em si, a vida e o mistério”. Mas
não pôde compreender. Naquela semana
encontrou dezenas de penas pelo caminho e sentia que devia guarda-las.
No mesmo dia voltava para casa
próximo da meia-noite, as ruas estavam silenciosas e escuras, e os grilos
pareciam estar dentro da sua cabeça,
sentia-se confusa com o coração apertado e com a frase que não saia de
sua cabeça. Olhou para o céu, contemplou
a lua cheia e pediu ajuda.
Sonhou que estava dormindo
tranquilamente em sua cama quando um pequeno corvo entrava em seu coração, ela
pôde sentir as asas se acomodando no pequeno espaço e quando acordou teve a
sensação que existia mesmo alguém ali. Olhou para todas as penas que havia
encontrado, pensou no corvo, mas não conseguiu associar à nada que respondesse
suas perguntas.
Levantou-se, pegou sua bolsa e
foi até a mata meditar. Escolheu um lugar no coração da mata, sentou-se e
fechou os olhos. A cabeça parecia estar
habitada pela população mundial, sentia seus pensamentos girarem, as vozes se
confundiam, até que conseguiu focar na sua respiração e deixar que o Sagrado
falasse com ela.
Aos poucos sentiu que deixava o
corpo, o barulho da mata estava dentro dela, a respiração da mata era a sua,
não existia limites entre uma e outra. Sentiu suas raízes fixando-se à terra e
sendo nutrida por ela. O silêncio tomou conta da sua mente e aos poucos sentiu
como se uma parte dela desprendesse do corpo e pudesse voar. Voou até uma
grande montanha e admirou-se com o que podia ver de lá em cima. Uma enorme
cachoeira com uma alta e fina rocha no centro, percebeu que no topo da rocha
havia um ninho e sentiu que devia ir até lá.
Quando sentou-se no ninho sentiu
como se já conhecesse aquele lugar. Por um instante sentiu como se sempre
houvesse pertencido àquele ninho, o som da água caindo, o vento soprando lá em
cima a enchia de tranquilidade, ela estava em segurança e seus ovos também.
Permaneceu ali em plena segurança
até sentir que devia voltar. Aos poucos trouxe suas raízes para dentro de si e
guardou suas asas. Sentiu-se no bosque novamente, sem abrir os olhos. Deixou
que aos poucos as batidas do seu coração fossem somente as suas.
Quando abriu os olhos a angústia
já não existia, a sensação de pertencimento a preenchera totalmente, então ela
pegou sua bolsa e voltou para casa.
ATO 5.
Ana nunca entendeu o que a frase
“a morte esconde em si, a vida e o mistério” queria dizer. Talvez porque ela
nunca soube que Marcos morreu para que ela pudesse encontrar quem ela realmente
era.
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